Estar de mal com os outros
É uma fantasia, esta de estarmos de mal com os outros.
Não os suportamos, não fazem o que queremos, têm mais poder, dinheiro e notoriedade do que gostávamos que tivessem. Temos momentos em que desejamos o poder da proibição: que não ocupem a nossa praia, nem passeiem os seus cães, que não pinguem a nossa roupa, que desimpeçam o nosso elevador, que votem no nosso partido, que destruam todos os partidos, que não tenham carro ou que o estacionem no paÍs vizinho, que não entrem na fila do engarrafamento, que amordacem as suas crianças barulhentas, que exilem os seus idosos que tanto demoram a subir escadas à nossa frente, que bebam da mesma marca que elegemos para a nossa, entre todos os refrigerantes, que gostem da mesma cor que sempre vestimos e que não a usem, que tatuem frases muito idênticas às frases que tatuamos – mesmo que a nossa pele seja um lugar inóspito e deserto de todas as comunicações desejadas, que nos achem mais magros, mais bonitos, mais saudáveis, mais tonificados e inteligentes.
Mesmo que a nossa acidez nos estrague as paredes do estômago a ponto de soluçarmos setas, atribuindo o fel aos outros e a indigestão a outros tantos, é sempre uma fantasia, um sintoma do que em nós é autodestrutivo, esta coisa de estarmos de mal com os outros para, num exercício capaz de nos tornar suportáveis ao espelho, estarmos um pouco menos de mal connosco.
A depressão é a nossa marca patológica. É um estado emocional grave que por vezes confundimos com tristeza. Somos os mineiros que descemos até ao mais fundo das minas que temos e promovemos. Os exploradores das nossas escuridões que nem sempre nos recompensam com pepitas de ouro ou de minério social.
Tudo nos chega vindo do nosso interior, como um suspiro ou um gás que nos asfixia e estimula os nossos processos destrutivos.
O sol é nefasto, a chuva inimiga, o frio não se suporta, o calor aperta-nos. O mundo é outro. E não o apreciamos.
Há sempre a fuga para o consumo. Mas o espaço comum, o grande hipermercado, torna-nos idênticos aos que são nossos iguais – e isso também é insuportável.
Continua, no entanto, a ser uma fantasia, esta, a de estar de mal com os outros. Os rostos sorridentes nas capas das revistas, os corpos perfeitos, os simulacros de felicidade que são uma camada que cairá com o tempo, a patina das estátuas de sal, a dor da negação. Não gostamos. E todavia é uma fantasia, tudo isto. Porque nós somos o espectador no patamar das nossas realidades reunidas. Queremos a expulsão do outro. E vemo-lo até no espelho que sofre a devolver-nos a imagem que criámos para cada um de nós. É que outro somos nós. E isso é doloroso e fútil. Isso de sermos o uniforme, em vez do uno, isso de sermos críticos em vez de apologéticos, isso de sermos iguais – na diferença relativa ao outro. Sofremos a diferença, perdidos numa unidade insípida que nunca atingirá a igualdade.
Alexandre Honrado
Escritor